Fotografando o TOUR DO RIO

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“Ajeito o óculos que o vento tirou do lugar. O motobatedor liga a sirene, se encolhe e acelera para passar espremido no trechinho de acostamento. Mas que acostamento? Só vejo mato. Por instinto, também me encolho sem perceber, sentindo pancadas de galhos na perna e cotovelo esquerdos.

Do outro lado, a centímetros, passam ciclistas profissionais de todas as partes do mundo zunindo feito balas, concentrados em manter a velocidade e estabilidade. De canto de olho vejo como borrões os sinais dos fiscais motocomissários, enquanto minhas mãos ajustam as duas câmeras para a luz que muda o tempo todo. Mais galhos na perna. Belo trecho de estrada, céu nublado, boas ideias na cabeça. “Boa foto para a fish-eye”, penso. Grudo a câmera com a grande angular na cara, e numa fração de segundos, verifico o fotômetro, ajusto uma leve subexposição, enquadro e disparo, praticamente dentro do pelotão.

Nem percebi a delicadeza da curva, a velocidade da moto perto dos 80km/h e o asfalto molhado. Foto feita, dois toques no ombro do motociclista, como um sinal de “ok”, e saímos rapidamente daquela muvuca insana no meio do pelotão. A moto acelera em frente para buscar um novo cenário. “Esse cara pilota muito”, penso novamente. Nem me toquei para o controle que aquele momento exigiu do piloto, deixei essa preocupação para a sua grande competência em me conduzir neste trabalho. Fiz a foto dos atletas em plena ação, e mais uma vez percebi como me sinto vivo dentro disso. Nesse momento, as contusões na perna e braço começam a incomodar.”


Assim são os meus momentos de fotografia do Tour do Rio, um dos maiores eventos de ciclismo das Américas, que envolve não apenas a prova de cinco dias dedicada à elite do ciclismo mas também outras 6 edições amadoras durante o ano, espalhadas por cidades do Rio de Janeiro. Há também diversas ações voltadas para crianças, sempre envolvendo bicicleta, esporte, mobilidade e cidadania. Os trajetos percorrem o estado do Rio de Janeiro em belíssimas estradas que cortam o litoral e as serras, sob chuva e sol. Nesse espírito, um grande número de aficcionados e profissionais do ciclismo conhecem novos lugares, contribuindo com economias locais e mantendo contato com um esporte fascinante, sempre acompanhados de uma estrutura extremamente profissional e dedicada.

Fotografo oficialmente esta série de competições desde a primeira edição, em 2010. Sou um dos poucos e felizes nomes que se envolveram em todas as edições, e resolvi escrever este relato para mostrar um pouco do que é fotografar algo de tal porte. Vamos rodar?

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Os eventos

O Tour do Rio é uma competição de classe internacional. Na verdade são vários eventos, mas o mais importante é a sequência de provas realizadas em cinco ou seis dias consecutivos, normalmente em agosto, voltada apenas para profissionais. Essa sequência percorre, em uma semana, um trajeto que dá uma volta completa no centro do Estado do Rio com 800 a 1000km de extensão. O trajeto de 2015 foi este:

Etapa 1 – 26/08 – Rio de Janeiro > Angra dos Reis (158km)
Etapa 2 – 27/08 – Angra dos Reis > Valença (175km)
Etapa 3 – 28/08 – Valença > Rio das Flores (166km)
Etapa 4 – 29/08 – Valença > Teresópolis (153km)
Etapa 5 – 30/08 – Teresópolis > Rio de Janeiro (145km)

Os organizadores tem por tarefa reunir um corpo de profissionais e gestores especializados neste tipo de evento, que roda junto aos atletas numa grande caravana integrada pelas equipes de ciclistas e muitos carros da organização. São reunidas mais de 400 pessoas que se deslocam de cidade em cidade como um corpo único, sempre acompanhados por um forte esquema de segurança da Polícia Rodoviária Federal (em 2015 foram 46 motobatedores) e constante clima de competição entre os atletas.

Em cada cidade de destino é realizada uma chegada altamente competitiva, valendo pontos e colocações em vários tipos de classificações. A chegada final, na Quinta da Boa Vista, é recepcionada por um grande número de espectadores e a cobertura da imprensa especializada, nacional e estrangeira. Vence o atleta que fizer todo o percurso em menor tempo. Em 2015, participaram 9 equipes nacionais e 6 estrangeiras (Italia, Estados Unidos, Rwanda, Colombia, Portugal e Costa Rica).

Todo o evento funciona sob rígidas normas esportivas internacionais de organização e segurança que envolvem não apenas os atletas, mas também a imprensa, motoristas, batedores, cronometristas, comissários, etc. É realmente algo muito bem organizado, de grande porte, com expectativas bem altas sobre todos os profissionais envolvidos. E os fotógrafos não ficam de fora de tanta exigência!!!

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A equipe de fotógrafos

Normalmente a equipe é formada por 3 ou 4 profissionais que dividem seus trabalhos entre “ação da prova” e “arena social”. Durante a prova acompanhamos o pelotão em motos com pilotos experientes. Deixamos as questões de segurança nas mãos deles, enquanto localizamos os melhores pontos para fotos. Podemos escolher entre fotografar na moto em movimento ou parados em um ponto da estrada, mas devemos obedecer às muitas regras de segurança.

As estratégias de trabalho entre os fotógrafos são individuais, mas às vezes dividimos o esforço quando o trecho traz muitos atrativos visuais (e isso é bem frequente!). Dividimos as grandes cenas e melhores posicionamentos entre nós, pois o dinamismo do pelotão nos impede de registrar tudo que gostaríamos. O que realmente vale é retratar cada prova diária como um todo, trazendo a grandiosidade dos cenários em um corpo conjunto de imagens.

O senso de equipe faz toda a diferença, assim como conhecer em detalhes as regiões por onde passaremos. A integração com a mídia é vital, pois logo ao final de cada corrida as imagens devem ser passadas para a assessoria de imprensa para divulgação on-line, o que nos deixa com pouco ou nenhum espaço para erros. Garantir uma alta taxa de acerto nos clicks é fundamental.

O equipamento

Com o tempo acabei definindo equipamentos que promovam 3 pontos importantes em meu trabalho no TdR: agilidade, qualidade e simplicidade. Não dá pra arriscar trabalhando com o mínimo, e também não é possível ser eficiente com excesso de material. Com isso em mente, meu set "hard & soft" hoje no TdR se concentra em...

Recursos fotográficos:

2 câmeras full-frame
1 teleobjetiva zoom (Sigma 50-500mm f/4-6.3 EX DG)
1 objetiva zoom normal (Nikkor 24-70 f/2.8 G ED N)
1 objetiva grande-angular zoom (Nikkor 14-24mm f/2.8 G ED N ou Sigma 10-20mm f/3.6-5.6 EX DC)
1 objetiva grande-angular fixa (Sigma 15mm f/2.8 EX DG)
6 confiáveis e velozes cartões de memória, entre 16 e 32GBytes
1 flash pequeno e leve (Nikon SB-700)
1 kit de limpeza de lentes versátil e pequeno
Baterias de reserva para todos os equipamentos e seus carregadores

Recursos digitais:

1 notebook com softwares para edição e publicação
1 HD externo para backup
Servidor de FTP próprio, software-cliente para FTP e contas em Cloud Repositories como contingência
Acesso de administrador às mídias sociais do evento

Os vários outros "vidros e metais" do meu kit ficam em casa, pois apenas trariam dor de cabeça na hora de me mover. Cada câmera fica sempre montada com uma teleobjetiva ou uma angular, pois como tudo é loucamente rápido, não dá tempo de trocar lentes na estrada. Às vezes faço trocas, mas apenas quando preciso variar as tomadas, ficando na “reserva” a 24-70mm e a 15mm.

Não uso mochilas ou cintos do tipo “bomb-man” quando estou na moto, pois o volume atrapalha. Paar levar tudo prefiro uma bolsa lateral acolchoada, tipo “tiracolo” com alças reforçadas, impermeável e de tamanho médio. Também não troco cartões durante o trabalho. Prefiro manter os dois slots de cada câmera já carregados, sempre com 16 ou 32 GBytes. Dependendo do dia, clima, cenário ou complexidade da etapa algumas objetivas permanecem na van da imprensa, dentro do meu case principal.

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E quando chove???

O clima varia muito no TdR, e tem sido comum atravessarmos trechos de chuva intensa. O trabalho não deve parar, e por isso uso duas estratégias:

Equipamentos resistentes à chuva:
As linhas profissionais de câmeras e objetivas (Nikon “Golden Ring”, Canon L, Sigma EX e Tamron SP) garantem relativa resistência à chuva e poeira. Isso me traz uma grande segurança, pois sei que nada vai pifar no caminho por causa de um clima mal-criado. Essas peças são caras, mas valem cada centavo quando o caldo engrossa.

Capas de proteção:
Sempre levo proteções para chuva, como as capas da Optech. Ligas de borracha ajudam a manter tudo no lugar. Na moto, um casaco técnico de montanha funciona como uma eficiente proteção adicional, onde abraço o equipamento mantendo-o seguro próximo ao corpo. Uso um anorak impermeável Trilhas&Rumos , o “Parkha Drytech”. Bom, bonito e barato.

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Técnica

Um fator que me agrada muito é a liberdade criativa que temos. Poucos trabalhos neste porte permitem que você desenvolva as imagens de forma livre, com sua "assinatura pessoal" valorizada como uma forma de arte. Nossos briefings nunca são engessados. Podemos até trabalhar sob um contexto jornalístico junto aos repórteres que acompanham o evento, mas isso não nos priva da criação constante.

Falar de técnica é bem pessoal. Embora haja resultados visuais típicos na fotografia esportiva, cada profissional possui seus truques na cartola. Porém, posso relacionar algumas das minhas preferências básicas, mesmo sabendo que não há receita-de-bolo para fazer grandes fotos:

ISO alto:
Uso essa abordagem para congelar os movimentos dos ciclistas e da câmera, principalmente com o uso da tele em fotos com a moto em movimento. Como as provas ocorrem sob boa luz do dia, não tenho problemas com granulações excessivas (a as câmeras full-frame ajudam). Fico entre ISO 800 e 3200, às vezes até 6400. A faixa entre 100 e 400 também é utilizada, mas raramente.

Tudo manual:
Excetuando-se o foco, mantenho toda a câmera no Modo Manual para ter o controle da velocidade e criatividade. Uma técnica que uso para ganhar agilidade é recordar da última fotometria que fiz. Comparo-a mentalmente com a nova condição de luz da cena e reajusto abertura e velocidade ainda com a câmera abaixada. Os dedos não param de girar os "dials" da câmera, enquanto cálculos mentais e visuais são feitos. Quando estiver pronto para fazer a foto, só precisarei me preocupar com a composição.

Fotografar parado:
Até posso fazer fotos com a moto em movimento, mas evito isso. As fotos ficam melhores quando me adianto no trajeto e desço da moto. Assim posso fazer fotos mais precisas, e ainda usar a tele para fechar closes em alguns ciclistas específicos, como um líder de equipe ou campeão de etapas.

Nunca, nunca, nunca fotografar contra o vento, com a moto em movimento:
Insetos e pedriscos voando em alta velocidade fazem estragos em vidros sensíveis...

Valorizar o cenário:
Closes de atletas são imagens importantes, mas é necessário integrá-los ao ambiente sempre que possível. Afinal, os cenários são sempre deslumbrantes, e é uma das nossas funções levar isso ao público. Essas cenas também promovem turisticamente os municípios por onde passamos, sendo de vital importância para o marketing do evento.

Trabalhar junto aos redatores e jornalistas:
As imagens contam histórias do evento, e nada melhor do que encaixá-las nos textos dos jornalistas que acompanham a caravana. Converso sempre com os caras da mídia antes de cada prova, coletando informações sobre o que irão escrever, e tento fazer imagens que encaixem em seus textos. Profissionalismo cooperativo é a chave.

Profundidade de campo ampla:
Um fundo borrado e a atenção concentrada em um único atleta funciona muito bem, mas nem sempre é adequado fazer isso. Há muitas marcas dos patrocinadores sendo exibidas, tanto na cenografia do evento quanto nos uniformes dos ciclistas. Por isso, há momentos em que eu aumento a profundidade de campo com o intuito de mostrar as marcas que financiam o evento. Sem eles não seria possível realizar nada, então há algumas fotos estratégicas que são feitas pensando na sua importância publicitária.

Sempre acertar o click:
Essa é a parte complicada. No dinamismo de um evento deste tipo não há espaço para erros. A fotometria e composição devem ser sempre cuidadosas e rápidas. Imagens medianas são excluídas de imediato do cartão, pois não há tempo para ajustes e consertos. Os profissionais da mídia precisam das imagens para postagem on-line logo na linha de chegada. Eu fotografo sempre em JPG e RAW, mas direciono os JPGs para a mídia, sem ajustes. Por isso, cada clique deve ser o mais acertado possível. Os arquivos em RAW ficam reservados para uso posterior que exija maior qualidade da imagem, como publicações em revistas.

Achar o “estado de fluxo”:
Se há um segredo, é esse. Feche os olhos e respiro bem fundo, deixando as coisas acontecerem tranquilamente. Assim entro mais fácil no precioso “estado de fluxo”. São dezenas de quilômetros pela frente para buscar imagens, então, "sem stress, baby". Já aprendi que boas fotos só aparecem depois de um ajuste mental onde tudo se encaixa de forma contínua e integrada. Uma das características do estado de fluxo é o aumento do domínio de situação, vital nesses momentos de intensa atividade. No “olho do furacão” sua dinâmica na ação acaba sendo relativa, e o objetivo é se tornar parte do movimento. Quando funciona tudo parece andar ao seu lado em um tempo lento e controlado, com reflexo na qualidade das imagens. Do contrário, o caos é total e os clicks errados superam os acertos.

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Concluindo...

O que narrei neste texto é apenas uma amostra do que é trabalhar na fotografia de algo tão complexo como o TdR, mas permite um vislumbre de toda a ação e dinamismo dessas ensandecidas horas de atividade.
Admito que este tipo de fotografia não é para para qualquer um, pois a tensão está sempre presente em um ambiente que não oferece o mínimo controle. É muito diferente de fotografar em um ambiente social controlado, seguro, onde fotos poderão ser encenadas, posadas e refeitas com um simples pedido. Estamos sempre correndo riscos em altas velocidades, onde grandes cenas passam por você em frações de segundo, e o alto risco físico exige regras que restringem sua liberdade de ação. Os ajustes da câmera devem ser precisos e rápidos, pois as luzes e sombras mudam a cada metro percorrido. Tudo está se mexendo, nada é estático! Loucura total.

No fim da prova, as imagens precisam ser passadas à mídia rapidamente, pois há uma multidão acessando a Internet para saber como foi a corrida! É uma loucura em tempo integral durante uma semana, mas ao término de tudo fica sempre uma sensação de “ausência”, um vazio que só poderá ser preenchido pela próxima edição, ou pelo próximo evento igualmente insano, que às vezes já está até agendado para a próxima semana. Confesso que isso vicia.

Assim é fotografar no Tour do Rio: dinamite pura, onde centenas de possíveis grandes fotos passam pelos olhos em poucos segundos, mas só conseguimos captar uma mínima porção delas. A totalidade das belezas permanece apenas na mente, como uma exposição viva de momentos que ninguém mais viu ou verá. E assim fica um grande aprendizado de atenção, respeito, sensibilidade e atitude fotográfica.

Boas fotos!


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