Conceitos e fundamentos da Fotografia Fine Art

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Sempre entendi que a arte pura não precisa de justificativas, ela é suficiente em si própria, basta apenas que exista. Seu propósito não precisa ser prático, claro ou físico, Sua função, sim, essa possui importância e objetividade: levar para dentro de outros o que há dentro do artista, abrindo canais para a percepção, entendimento (ou discordância, por que não?) do pensamento alheio. É, então, etérea e fluida, feita para provocar o pensamento, em contraponto à insensibilidade de todo o resto.



O "boom" da fotografia digital que ocorreu há uns poucos anos, provocado pela facilidade de acesso a equipamentos, fez surgir uma massa de fotógrafos que, de uma hora para outra, passaram a conviver com conceitos, técnicas e termos que eram de domínio restrito aos antigos profissionais da área.

Lembro que um aluno me perguntou certa vez se essa avalanche não seria péssima para a fotografia. Respondi que achava justamente o contrário! Acho tudo isso muito bacana, pois de repente milhares de pessoas tiveram oportunidade de mostrar sua expressão, usando a fotografia como recurso. E com a internet isso atravessou fronteiras! Excelente! Para criadores, ter sua expressão distribuída a um grande número de outras mentes não tem preço.

Entretanto, apenas ter contato superficial com informações que antes eram conhecidas por poucos privilegiados não significa que elas sejam compreendidas ou utilizadas por muitos dessa nova geração de fotógrafos, o que fez surgir também muitas dúvidas, confusões e equívocos sobre vários assuntos. E isso é, sim, péssimo para a fotografia.

Um destes termos (e que anda muito em moda atualmente) é o "Fine Art". Hoje ele se confunde com a mera reprodução fotográfica de qualidade em certos papéis, mas é muito mais do que apenas isso. Muitos fotógrafos imprimem suas imagens em caros papéis "canvas" ou de algodão, e acreditam estar assim antenados com o Fine Art, sem saber muito bem o que o conceito significa ou o que estão produzindo. Este termo é coberto de dúvidas em nosso país, que sempre carece de boas informações a respeito do que já é muito comum em mercados evoluídos, ainda mais quando o assunto é ligado à arte.

Em 2011 escrevi um pequeno texto aqui no site explicando por alto o que significa "Fine Art". Mas foi realmente "por alto", e me sinto obrigado a abordar novamente o assunto, mas dessa vez com mais conteúdo. Vamos então tirar algumas dúvidas, deixando claro o que é "Fine Art" e quais são os métodos, ideias e ideais que o cercam!

Afinal, que raio é esse tal de faineárti?

No universo artístico, há dois termos que definem a arte pela sua natureza, digamos, "utilitária". Há arte que serve para algo, ou seja, possui "utilidade" ou "aplicabilidade" no dia-a-dia, e há arte que serve apenas para ser... arte.

A primeira, denominada "arte utilitária" ou "arte aplicada", se refere àquilo que é criado com a ideia de ser útil para algo, mas com características estéticas que a fazem parecer arte, mesmo não sendo a princípio. Um bom exemplo é a arquitetura, onde um espaço é construído com o firme propósito de ser útil. Mas este mesmo espaço pode carregar traços, linhas, formas e volumes criados para serem agradáveis e admirados. Então é arte! Mas não foi feito com o intuito de "ser arte"! Assim é a arte utilitária. É bonito, é admirável, mas antes de ser isso, precisa ser útil, foi criado para ser útil e possui este propósito como algo primordial e indissociável. O design industrial é outro exemplo: diversos produtos são criados para ser úteis, mas nada impede que sejam desenhados com um relativo senso estético. Pense em canecas! Elas são apenas canecas, mas nada impede que sejam coloridas e agradáveis ao olhar. Fica fácil entender o conceito quando analisamos ítens criados sob estilos de movimentos estéticos, como a Bauhaus, a Art Deco, o Steampunk e muitas outras escolas de design.

No outro extremo, totalmente oposto ao utilitarismo, está a Fine Art. Essa é a arte criada para ser puramente arte, e mais nada. Seu apelo é simplesmente estético, longe do critério de uso prático, ou de servir para algo. As artes tradicionais e ancestrais, como a pintura, desenho e escultura, podem se enquadrar aqui. É algo tradicional, e vem do desejo humano de transmitir sensações através das manifestações de expressão visual. É algo visualmente estético, criado com propósitos intelectuais, sendo julgado pela sua beleza e/ou significado, não pela sua utliidade prática. Em resumo, é algo criado para ser visto, absorvido e interpretado. Ela não precisa servir para algo, pois já é algo em si só. Meio estranho, não? Mas é assim mesmo. "Fine Art" já nasce como arte pura, pelos seus objetivos somados à intenção do seu criador.

Apesar do embate entre estes dois conceitos ser considerado antiquado, em vista às constantes "invasões" que um faz sobre o outro atualmente (a própria fotografia age dessa forma, o design também), é necessário pensar dessa maneira para que seja possível compreender melhor o Fine Art e como o conceito funciona.

E na fotografia?

Bem, aqui as coisas não são tão simples, tudo tende a ser mais embolado. Afinal, se pensarmos na fotografia como uma ferramenta para registro do momento, então há uma utilidade prática inerente à existência de uma certa foto! Se pensarmos no jornalismo, por exemplo, fica bem fáci de entender: há o claro sentido de utilidade ligado à cada foto feita em uma reportagem! São documentos que comprovam o fato. Então, a fotografia é, essencialmente, utilitária.

Porém, há um outro tipo de fotografia, feita de maneira diferente, que traz em si caracteristicas de uma obra Fine Art. Essa fotografia é especialmente produzida para ser exibida e interpretada. Ela não precisa "servir" para algo prático para ter validade, simplesmente transporta uma ideia, transmitindo ao observador uma determinada sensação ou pensamento. Foi feita para ser vista, analisada e compreendida, atendendo ao único propósito de estar ali, irradiando algo. Esse pensamento surge ainda no passado, quando se percebeu que a fotografia, então inventada recentemente, poderia ser algo mais do que o registro do momento, ou uma mera cópia química hiper-realista do tempo e espaço. Ela poderia ser arte!

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A fotografia Fine Art mantém um compromisso firme com a técnica apurada, estética e interpretação. Algumas vertentes criativas, como o abstratismo, são comumente escolhidas por vários criadores de Fine Art. Mas o campo de atuação é muito amplo, e até mesmo trabalhos comerciais, como eventos ou still, podem se beneficiar dos ideais do Fine Art.



Então, fica claro que a fotografia não é, por si só, sempre Fine Art. Ela é utilitária quando simplesmente atua de maneira documental ou comercial, como registro, com o intuito de servir a algo prático e objetivo. Quando intenções mais profundas entram em cena, como interpretação, criatividade, subjetividade, estética e transporte de valores, aí a coisa muda, e as inclinações para o lado Fine Art começam a aparecer.

Assim, é preciso saber que na fotografia comumente se "misturam" ambos os conceitos. Por exemplo, é possível e até muito comum que uma foto feita numa cobertura jornalística fique tão carregada de expressão e criatividade que se confunda com Fine Art. O mesmo pode acontecer com uma foto feita num casamento, que mesmo sob contexto puramente comercial e documental, às vezes é fonte de cenas realmente artísticas. Então, há situações em que tudo se mistura. Mas ainda assim a ideia original da Fine Art pura continua sendo válida: esse é um tipo de fotografia especial, que já nasce sendo arte sob forte e lúcida intenção do fotógrafo.

Pode não ser tão simples...

Pois é. Na produção de Fine Art pura, há muito a ser considerado. Dá pra ir mais longe ainda. Não basta que a fotografia seja bonitinha e um pouco mais interessante para ser considerada Fine Art. Normalmente, aspectos profundos relativos à composição, criatividade e excelência técnica são exigidas na produção desse tipo de imagem. A visão pessoal do autor e seus objetivos de interpretação são fundamentais, pois agora ele atua como gerador de imagens de onde se espera um mínimo de profundidade no seu significado.

Então, é interessante que uma imagem já nasça projetada para ser Fine Art, carregada de técnica, simbolismo e intenção, valorizando e expondo a visão criativa do artista. Quando for exibida (seu destino certo, em exposições, álbuns ou portfolios impressos), precisa passar aos seus observadores valores que exigirão algo mais do que a simples visualização. Filosoficamente, o fotógrafo pode assumir certas ideias que guiarão seu processo criativo, o que certamente influenciará no resultado.


Quer saber mais sobre o "Estado de FLuxo"? Clique aqui e leia meu artigo sobre o tema.

Também temos um artigo sobre o Círculo de Excelência, clique aqui!



A finalização

Hmmm. Já começa a ficar bem claro que produzir Fine Art não significa apenas pegar uma ou outra foto boa e imprimir em papéis especiais super caros. Mas a impressão é um passo importante no mercado Fine Art, e deve obedecer a alguns critérios. Já vimos que o conceito começa na idealização da cena, antes do click. Mas, para que tudo se finalize de acordo, é preciso completar o processo denrto de padrões estabelecidos pelo mercado de arte, para atender às exigências de galerias, museus e colecionadores. As impressões de imagens Fine Art precisam mesmo ser feitas com papéis e pigmentos especiais, que garantem longevidade da obra com a permanência das cores e tonalidades originais. Estes materiais são chamados de "archival type". Até mesmo o emolduramento deve seguir certos padrões, com o uso de materia-prima inerte, livre das químicas agressivas encontradas nos materiais comuns.

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Procuro analisar em detalhes os prints feitos em meu estúdio. Manter a precisão dos tons
e a alta qualidade da impressão é fundamental no Fine Art.



Entretanto, tanta exigência com a qualidade acaba sendo útil para qualquer fotógrafo, que ao finalizar seu trabalho nestes materiais especiais terá à sua disposição toda a durabilidade e excelência dos grandes trabalhos artísticos. Ou seja, não é preciso que sua imagem vá para galerias ou seja comprada por um colecionador famoso para fazer uso dos recursos e da qualidade que a finalização Fine Art proporciona. Atualmente, toda esta gama de qualidade está disponível para qualquer um, seja qual for seu objetivo. Mas, para que uma imagem seja considerada Fine Art, em todos os aspectos, é preciso que o conceito seja aplicado desde a concepção da imagem. É preciso que ela seja produzida com a intenção de ser uma obra artística, e não uma simples documentação ou mero produto comercial.

Vemos agora que a fotografia Fine Art compreende todo um amplo processo, que começa antes do click, com os propósitos criativos do autor, e termina após a moldura, com a interpretação dos observadores daquela obra. Passa pela busca da imagem, pelos modelos mentais de criação, pelo enquadramento e ajustes da câmera, escolha do tipo de arquivo, tratamento, tipo de papel, forma de impressão, etc... O propósito é obter o máximo em qualidade, tanto nos conceitos puramente imagéticos quanto nos aspectos físicos.

Papéis e pigmentos

O mercado possui inúmeras alternativas para finalização de trabalhos Fine Art. No Brasil ainda estamos engatinhando, mas já temos à disposição excelentes produtos (poucos, mas temos) feitos pelos maiores produtores do mundo, como a alemã Hahnemühle e a francesa Canson. São papéis, pigmentos e acessórios para molduras e portfolios feitos especialmente para este fim. Obviamente, são mais caros do que materiais comuns, mas são os mesmos utilizados interncionalmente pelas maiores galerias e profissionais.

No caso dos papéis, vários tipos estão disponíveis, com diversos acabamentos. Normalmente são produzidos com fibras de algodão, mas há também aqueles de alfacelulose, polietileno, fibras de bambu e outros materiais exóticos. Sua maior característica é a ausência de branqueadores químicos, garantindo a alvura do papel por um tempo muito prolongado, alguns chegando a 100 anos (de acordo com a documentação técnica da Hahnemuhle). A escolha entre acabamentos fica por conta do fotógrafo, que pode optar pelos "matte" (totalmente foscos), "luster" (semi-brilho), satinados ou brilhantes, em diversas gramaturas. Normalmente utilizamos papéis mais pesados, com 300gr/m2 ou mais. Todos os fabricantes possuem uma vasta cartela de opções.

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Alguns papéis Fine Art produzidos pelas alemãs tradicionalíssimas Harman e Hahnemuhle, que
atuam na fabricação de papéis desde 1584, há mais de 400 anos.



Entre os pigmentos também há diferenciais. São utilizadas as tintas "pigmentadas", diferentes das tintas "corante" e "solvente" das impressoras caseiras ou dos plotters comerciais. Os fabricantes Epson, Canon e HP produzem impressoras especiais, com tecnologia jato de tinta, que utilizam de 9 a 12 cartuchos de pigmentos (impressoras caseiras usam apenas 3 ou 4), garantindo extrema fidelidade na reprodução das cores originais. Estas tintas especiais são altamente duráveis. Para se ter uma ideia, a Epson garante a permanência da cor dos seus pigmentos Ultrachrome por 80 anos em ambiente adequado.

A impressão em jato de tinta, conhecida como "Gicleé" neste segmento, se desenvolveu muito e atende a todos os requisitos de qualidade desse exigente mercado. Estas impressoras conseguem trabalhar com os mais diversos formatos, gerando saídas de até 60 polegadas de largura. Há uma série de fatores técnicos envolvendo esta parte do trabalho, como a utilização de perfis de cor específicos para cada tipo de papel, calibragem de monitores para que se possa prever com mais exatidão o resultado impresso, densidade da aplicação das tintas, acesso às características do papel, como densidade de preto, nível de saturação, transparência, etc. Neste ponto, o conhecimento técnico vale muito, pois o alto custo dos insumos não permite margem para erros.

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Para garantir a reprodução fiel de cores ou de preto-e-branco, impressoras Fine Art contam com muitos
cartuchos de pigmentos. Nesta foto vemos o banco de cartuchos da Epson 3880, com 9 cores.



O resultado

Sempre é surpreendente ver uma grande imagem impressa nestes materiais. O objetivo é ter o melhor possível, sem concessões. Para entregar à impressão a melhor qualidade, o fotógrafo precisa fazer uso de recursos técnicos avançados, como a escolha pelos arquivos RAW e TIFF. Se a imagem traz toda a força da expressão e criatividade que o conceito Fine Art exige, então o quadro está formado!

Como vimos, é um processo amplo. Apenas imprimir com insumos especiais não faz de nenhuma imagem uma arte fina. Conceitualmente, há toda uma cadeia de pensamento que envolve esse tipo de fotografia. Sempre foi assim em qualquer outra arte visual, desde muito tempo. Quando um pintor se senta à frente de uma tela em branco, desde as épocas passadas, suas intenções de produzir a maior obra da sua vida já estão bem claras e definidas. Deve ser assim também na fotografia, a cada click. Quando isso é levado até o final, os resultados são impressionantes. Isso é Fine Art.

Paz e boas fotos!


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